Japão Negro: Percepção e representação racial nos games japoneses

Visitando um tópico pouco discutido sobre a Terra do Sol Nascente.


Compreender os jogos que tanto apreciamos vai além de simplesmente jogá-los. Isso envolve entender seu processo de desenvolvimento e as influências político-econômicas que afetam a maneira como são produzidos.

Hoje, gostaria de apresentar uma visão geral dos jogos japoneses, um tema que sempre foi objeto de meus estudos e frequentemente é o foco dos meus trabalhos acadêmicos. Vamos explorar como as minorias, especialmente em termos de representações raciais, são retratadas nos jogos e os principais motivos pelos quais certos estereótipos persistem.

Yasuke, o “samurai negro” retratado em sua série na Netflix

Uma breve contextualização sobre o Japão

Na década de 1970, a percepção predominante de que o Japão era uma nação homogênea alcançou seu ápice (Yoshino, 1992). Este conceito duradouro de homogeneidade contribuiu para a escassez de diversidade na representação racial nos jogos japoneses, uma vez que muitos não contemplavam a possibilidade de pluraridade étnica.

No Japão, além das minorias raciais, existiam grupos que foram socialmente construídos como “não-japoneses”. Isso influenciou a forma como certos grupos eram representados nos jogos e contribuiu para a perpetuação de estereótipos negativos. Além disso, em vários contextos, a mera existência desses povos não era retratada.

Retratação antiga de um elefante em terras africanas, fotografia do livro “Sekai Kunizukuchi”

O conceito ocidental de raça só começou a ser enfatizado no Japão em 1869, quando Yukichi Fukuzawa publicou “Sekai Kunizukuchi” (Registro dos Países do Mundo) (Dower, 1986). Este livro foi adotado nas escolas japonesas como parte do currículo de geografia, representando um marco na percepção racial no país.

Adicionalmente, o período em que a educação japonesa começou a incorporar fontes de informação estrangeiras como material didático coincidiu com o surgimento do racismo científico nas ciências naturais e sociais na Europa (Dower, 1986). Como um país com avançado desenvolvimento científico, isso influenciou também a produção cultural.

Pessoas nativas do povo Ainu

Analisando de forma mais ampla na linha do tempo, durante o período de 1800 até o início dos anos 1900, o Japão buscou se estabelecer como uma nação de destaque, emulando países como os Estados Unidos e as grandes potências europeias (Siddle, 2011). Isso incluiu a definição da “raça japonesa” como parte de uma narrativa que assegurava superioridade sobre outros grupos étnicos na Ásia e dentro do próprio território japonês, como os Ainu.

A necessidade de competir no cenário global levou o Japão a ter receio de ser considerado inferior por ser localizado na Ásia, um continente considerado menos influente no cenário global. Isso se baseava na ideia de que se o Japão não se tornasse um colonizador, ele correria o risco de ser colonizado por outros.

Mapa geral mostrando a extensão do império japonês

Assim, indivíduos de regiões como Okinawa, China, Taiwan, Coreia e das ilhas do Pacífico, que em algum momento estiveram sob domínio japonês, eram frequentemente compelidos a adotar a língua e a cultura do país para se tornarem “bons cidadãos japoneses” (Oguma, 2002). Isso impactou a diversidade racial e cultural no país.

Em suma, a noção de “japonesidade” é uma construção normativa, contrastando com conceitos estrangeiros, que são frequentemente percebidos como “estranhos” (Reighton, 1997). Para ser considerada japonesa, uma pessoa deve cumprir vários critérios, incluindo fluência no idioma, cidadania, ancestralidade e conhecimento cultural. Caso contrário, ela é imediatamente vista e tratada como estrangeira.

A visão e representação dos negros no Japão

Na década de 1980, a mídia internacional começou a documentar o tratamento de pessoas negras no Japão, destacando preocupações com a extrema direita japonesa, particularmente o então primeiro-ministro Nakasone Yasuhiro. Esse período marcou um momento de conscientização global sobre as questões raciais no país.

Para muitos japoneses nascidos antes de 1935, seu primeiro contato com a cultura negra ocorreu por meio de músicas de Stephen Foster, como “Old Black Joe” (Wagatsuma, 1967). Essas canções contribuíram para a percepção dos negros como algo distante e exótico, mas não necessariamente pejorativo na época.

Um samurai negro, supostamente Yasuke

O entendimento dos japoneses sobre pessoas negras era inicialmente baseado em relatos e documentos de países imperialistas, já que o Japão estabeleceu relações mais próximas com os EUA e a Europa antes de estabelecer laços diplomáticos com nações africanas e latinas. Isso influenciou a visão de inferioridade associada a esses povos, herdada de seus colonizadores e escravizadores.

Embora essa tenha sido a compreensão comum por muito tempo, registros históricos mostram que visitantes africanos, como artesãos, escravos e servos, acompanharam caravanas portuguesas e holandesas no século XVI, deixando vestígios de sua presença no Japão.

Representações artísticas de pessoas negras no império japonês

No século XIX, o artista Hashimoto Sadahide expressou admiração pela dignidade e graça das mulheres negras que conheceu em Yokohama, destacando suas semelhanças culturais e descrevendo-as como “encantadoras” e detentoras de “dignidade feminina” (Meech-Pekarik, 1987).

Durante a era Edo (1603-1867), africanos residiam em assentamentos holandeses em Deshima, perto de Nagasaki, onde tinham liberdade de circulação e despertavam a curiosidade dos habitantes locais. Alguns deles foram libertados após a proibição da escravidão por Toyotomi Hideyoshi no final do século XVI, o que levou à formação das primeiras famílias mestiças de japoneses e negros (Clemons, 1990).

Ariana Miyamoto, uma mestiça de negros e japoneses, foi concorrente da Miss Universo 2015 pelo Japão

A prática de formar famílias com pessoas negras foi proibida no século XVII, mas continuou, principalmente devido à presença de pessoas negras em locais de lazer e turismo sexual da época. Acredita-se que os filhos dessas uniões tenham sido os primeiros “mestiços” do Japão, contribuindo para a marginalização de indivíduos mestiços e a ausência de certos direitos exclusivos aos japoneses “puros”.

No início das relações dos japoneses com estrangeiros brancos, estigmas eram comuns. Eles eram frequentemente descritos como incivilizados, violentos e até ridicularizados como “tengus” devido aos seus narizes maiores em comparação aos dos japoneses. Hoje, é irônico que o padrão de beleza japonês frequentemente se baseie no estereótipo europeu, criando um conflito com o modelo de beleza tradicional japonês.

O programa “cool Japan” e suas implicações em jogos e produtos culturais japoneses

Na era contemporânea, o Japão alterou sua estratégia de influência de econômica para cultural. Um exemplo proeminente disso é o programa “Cool Japan,” que tem como objetivo estimular a produção e exportação de materiais culturais japoneses, como música, animação, arte em geral e jogos. Este programa contribuiu para a disseminação mundial da cultura japonesa no século XXI.

Jynx, um Pokémon que teve seu modelo alterado por conta de acusações de racismo

Essa transição para uma estratégia de influência cultural trouxe tanto visibilidade positiva para a produção cultural japonesa quanto críticas. Muitas obras japonesas ainda enfrentam desafios, incluindo a presença de estereótipos antiquados, problemas na cultura idol e escândalos associados a ela, bem como representações preconceituosas que às vezes são trivializadas.

Alguns jogos exemplificam esses problemas, como Vendetta (1991), que utiliza blackface em suas “piadas”, Gekisha Boy (1992), que retrata o racismo de maneiras absurdas, e a série Punch-Out!, que compila um conjunto de estereótipos sobre diversas nacionalidades.

Vendetta era um beat-them-up cheio de esteriótipos e preconceitos, inclusive com homossexuais

Ademais, jogos mais recentes também são alvo de críticas por representações negativas de minorias LGBT+ e narrativas sexistas em personagens femininas, sendo Bayonetta e 2B (NieR:Automata) os casos mais notórios. Esses exemplos ressaltam a necessidade contínua de abordar questões de representação racial e preconceito nos jogos.

A indústria de jogos no Japão, bem como a ocidental, enfrenta um problema fundamental: a falta de diversidade na produção de jogos. A maioria dos jogos japoneses é desenvolvida por homens cisgênero japoneses, o que cria um ambiente de produção com escassez de perspectivas diversas. Esse cenário tem sofrido mudanças desde os anos 2000, mas, infelizmente, a um ritmo muito lento.

A infame cena de Persona 5 em que Ryuji interage com homossexuais

Além dessas circunstâncias no ambiente de desenvolvimento, mulheres, pessoas negras, mestiços e membros da comunidade LGBT+ são minorias tanto na sociedade japonesa quanto na indústria de jogos. Isso contribui para a criação de ambientes de trabalho hostis para as pessoas que gostaríamos de ver representadas e para a sub-representação desses grupos em jogos e produtos culturais.

Recentemente, houve um levante, com mais de 70 denúncias alegando práticas discriminatórias relacionadas a gênero, raça e nacionalidade no ambiente de trabalho. A maioria das denunciantes eram mulheres envolvidas em e-sports, desenvolvimento de jogos, streaming e animação. Essas denúncias resultaram em ameaças de morte, bullying online e outros comportamentos violentos do público contra as vítimas.

O movimento “MeToo” teve forte adesão no Japão

Nos dias subsequentes, as denúncias de assédio sexual, racismo e bullying corporativo se intensificaram. Muitas das mulheres que fizeram as denúncias experimentaram a prática de “gaslighting”, onde suas alegações são desacreditadas e elas são apontadas como responsáveis pela queda na aprovação pública de suas empresas.

É relevante destacar que, mesmo que a maioria dos relatos e denúncias envolva mulheres e não necessariamente outras minorias, é essencial reconhecer como os desafios enfrentados por grupos minoritários ou que têm seus direitos restringidos se interligam e se correlacionam, mesmo em contextos variados.

Alguns grupos de humoristas japoneses se apresentam com blackface


Na sociedade japonesa, comportamentos discriminatórios incluem diversos tipos de situações constrangedoras, como, por exemplo, ocasiões em que pessoas não japonesas se veem sentando sozinhas no transporte público. É importante também mencionar o uso de blackface em grupos de “humor”, uma prática ofensiva em que pessoas não-negras pintam seus rostos de preto para representar pessoas negras, e casos de whitewashing na publicidade, onde pessoas de pele branca representam personagens de outras etnias.

Um exemplo recente disso foi uma propaganda da Nissin que retratou a tenista mestiça Naomi Osaka, que é negra, com a pele mais clara em sua versão anime, um caso clássico de whitewash comum em jogos japoneses e animes que representam pessoas de cor. Quando a pele negra é retratada de forma mais escura do que o tom de pele “pardo”, frequentemente isso é acompanhado por características caricatas.

A propaganda da Nissin foi muito criticada mundo afora

Outro problema sério é a crença absurda entre alguns cidadãos japoneses de que, por seu país não ter uma história semelhante de escravidão de negros, representações como blackface e estereótipos de povos negros seriam uma forma de homenagem a essas culturas e não deveriam consideradas ofensivas.

Todos esses fatores exercem uma influência direta nas representações em jogos, uma vez que são criados por indivíduos que fazem parte dessa cultura e sociedade.

Quais lições tiramos disso tudo

Por fim, é evidente que o Japão, tradicionalmente considerado uma nação homogênea, não é tão uniforme quanto se pensava. O país enfrentou desafios ao longo de seu desenvolvimento desde o século XVI no que diz respeito às relações com outros povos, cometendo erros que ainda ecoam na atualidade. Ao adotar uma perspectiva eurocêntrica, especialmente durante a era Edo, preconceitos foram enraizados em sua sociedade.

Hoje, a indústria de jogos enfrenta desafios significativos relacionados à diversidade, assim como o resto do mundo, que também está reconhecendo a necessidade de lidar com essas questões. A falta de representação no cerne da produção, a sub-representação de mulheres, pessoas negras, mestiços e membros da comunidade LGBT+, bem como casos alarmantes de discriminação de gênero e racismo, destacam a urgência de reformas na indústria de jogos como um todo, incluindo a indústria japonesa.

Barret ficou menos alegórico em sua nova versão de Final Fantasy VII

Em última análise, as representações em jogos são moldadas pelos contextos culturais e sociais em que surgem. Abordar questões de preconceito e estereótipos nos jogos japoneses demanda uma mudança fundamental na indústria cultural do país. Ao reconhecer sua história e compreender as implicações de suas representações culturais, o Japão pode contribuir para a construção de uma indústria de jogos mais inclusiva e respeitosa.

A conscientização e o diálogo sobre esses temas são passos essenciais em direção a uma representação mais justa e responsável nos jogos e na cultura pop japonesa em geral. Por isso, este texto reflete a minha perspectiva como um homem negro LGBT+ que tem paixão tanto por ler artigos científicos quanto por joguinhos japoneses.


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Ayana

Estudante de Letras - Japonês na Cruzeiro do Sul; formado em paleografia na oficina Sérgio Buarque de Holanda e em design pela Saga. Prefere jogos narrativos, RPGs ou de ritmo. Atualmente passa horas jogando indies e RPGs no Switch ou sustentando seu vício em gachas de celular. Tem como franquias favoritas Fire Emblem, Pokémon, Persona e Final Fantasy. Enciclopédia humana de Love Live e garota mágica nas horas vagas.